Guilherme d' Oliveira Martins

Guilherme d’Oliveira Martins (Lisboa, 1952). Licenciado e Mestre em Direito. Professor Universitário Convidado. É Presidente do Tribunal de Contas e Presidente do Centro Nacional de Cultura. Foi Secretário de Estado da Administração Educativa, Ministro da Educação, Ministro da Presidência e Ministro das Finanças. Foi Presidente da SEDES. Sócio Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Autor de: Oliveira Martins, Uma Biografia; Ministério das Finanças, Subsídios para a sua História no Bicentenário da Secretaria de Estado dos Negócios da Fazenda; Escola de Cidadãos; O Enigma Europeu; Educação ou Barbárie?; O Novo Tratado Constitucional Europeu; Europa, Portugal e a Constituição Europeia (coord.); Portugal, Identidade e Diferença – Aventuras da Memória; O Novo Tratado Reformador Europeu. Tratado de Lisboa – o Essencial; Património, Herança e Memória – A Cultura como Criação; Os Grandes Mestres da Estratégia. Estudos sobre o poder, a guerra e a paz, (em colab.); Mounier: O Compromisso Político, de Guy Coq (tradução e prefácio); Na Senda de Fernão Mendes – Percursos Portugueses no Mundo.
Comunicação
Diálogo de saberes e as humanidades
Resumo
A cultura ganha uma especial importância na vida política e económica contemporânea. O desenvolvimento humano não é compreensível nem realizável sem o reconhecimento do papel da criação cultural, em ligação estreita com a educação e a formação, com a investigação e a ciência. O que distingue o desenvolvimento e o atraso é a cultura, a qualidade, a exigência – numa palavra, a capacidade de aprender. Deixou de fazer sentido a oposição entre políticas públicas centradas no património histórico, por contraponto à criação contemporânea. O diálogo de saberes, as humanidades e um conceito dinâmico e aberto de património cultural obrigam a considerar a aprendizagem como fator decisivo de desenvolvimento humano.
Os cidadãos europeus são chamados a criar elos permanentes que garantam a existência de uma autêntica diversidade cultural, como fator de coesão, em lugar da fragmentação, devemos repensar os fundamentos da Europa plural, como realidade aberta ao mundo e às diferentes culturas, consciente da sua própria memória e das suas raízes, baseada numa pluralidade de pertenças e na procura de valores comuns. Eis por que temos de olhar o Património Cultural na sua relação direta com as pessoas e as comunidades, de modo a considerar e a concretizar uma prioridade efetiva à Cultura das pessoas, da memória e da criatividade. Karl Jaspers falava, aliás, da Europa como sinónimo de liberdade, história e ciência. Liberdade, como vitória sobre o arbitrário, porque a queremos quando sabemos que a não temos. História, como encontro e diálogo, no sentido da compreensão do tempo como fator de emancipação. Ciência, como exigência de verdade – “não só como jogo de pensamento lógico, mas como vontade absoluta, universal de conhecer o conhecível”.
A diversidade cultural e a pluralidade de pertenças obrigam, de facto, a recusar as identidades fechadas. As identidades só ganham pleno sentido quando sejam abertas e disponíveis para dar e receber, e para assegurarem um permanente diálogo entre a tradição e a modernidade. Tradição significa transmissão, dádiva, entrega, gratuitidade. Modernidade representa o que em cada momento acrescentamos à herança recebida, como fator de liberdade e de emancipação, de autonomia e de criação. A novidade resulta sempre desse diálogo entre o que recebemos e o que criamos. E a cultura situa-se nesse ponto de encontro e de saída – não em confronto com a natureza, mas complementarmente a ela. As casas, os lugares, as regiões, os povos, as nações têm um espírito, sempre feito de diferenças e de interdependência.
Como George Steiner, temos de nos perguntar (sem ceder aos discursos negativos sobre a educação) se «a nossa escolaridade, hoje, é amnésia planificada», como afirma o crítico, que também nos alerta para o facto de «a investimentos milionários no arquivo e na conservação do património bibliográfico, documental e artístico» se contrapor a «objetiva secundarização a que são votadas quotidianamente as Humanidades no ensino, na investigação e na irradiação social». Há que recusar o congelamento da memória, que conduz à subalternização das Humanidades. Esterilizar a literatura através de análises esquemáticas e estereotipadas leva à desmotivação, ao desinteresse e ao insucesso. Para Vítor Aguiar e Silva, as grandes reformas urgentes, a efetuar na educação exigem «melhorar, fortalecer e enriquecer o conhecimento da língua». Valorizar as Humanidades tem de ser uma prioridade fundamental, centrada no incentivo da leitura dos textos, na prática da expressão oral e escrita, na interpretação e numa especialíssima atenção aos textos literários de diferentes épocas e géneros.
Não há nitidez de espírito sem ideias claras e distintas, não há conhecimento sem o contacto com os autores e os textos originais. A pobreza vocabular, a confusão nos argumentos, a desordem na exposição, a indigência das ideias – tudo isso tem a ver com a desatenção e a indiferença que atingem as Humanidades e a literatura. As cabeças bem-feitas, de que falam Montaigne e Edgar Morin determinam abertura de espírito, diálogo entre saberes, capacidade de conhecer e compreender. Lembremo-nos de Pico della Mirandola, para quem as Humanidades iam do conhecimento e da sabedoria no domínio da literatura e das artes até ao espírito filosófico e científico. Nada pode ser estranho às Humanidades. Não podemos esquecer que a grave crise financeira que vivemos deveu-se, fundamentalmente, à desvalorização da capacidade de criar e de inovar, nas duas últimas décadas.
«O discurso das Humanidades tem de ser sempre (…) a defesa intransigente contra os dogmáticos, os tiranos e os espoliadores da liberdade e da dignidade do homem, no plano das ideias e dos valores, e no plano das práticas concretas» (Aguiar e Silva). A apologia das Humanidades nada tem a ver com uma referência datada ou retrospetiva. Humanidades relacionam saberes básicos que, por sua vez, pressupõem competências, com instrumentos para compreender e produzir textos de diversa índole, com património escrito pelas gerações que nos antecederam e com a tomada de consciência da dignidade e das limitações próprias da humanidade. Sem disciplina não há alegria do conhecimento.
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